domingo, 7 de fevereiro de 2010

Artigo: Iniciação à barbárie

Soberba intelectual de certos professores pode levar ao sadomasoquismo de universitários no trote

(*) Antônio A. S. Zuin


"É preciso começar por deixar de ser professor para poder sê-lo."
(Jean-Pierre Vernant, Entre Mito e Política)

As cenas das barbáries cometidas nos trotes realizados nas universidades brasileiras novamente se repetem e parecem competir entre si com o escopo de captar nossa atenção. No momento, a que mais se destaca é a do calouro do curso de veterinária da Universidade Camilo Castelo Branco, em Fernandópolis (SP), que teve as roupas rasgadas e foi hospitalizado por ter ingerido álcool combustível diante do riso sádico de seus veteranos. Mas, certamente, outras atrocidades mais chocantes acontecerão e, possivelmente, serão capazes de, digamos, lubrificar as engrenagens de nossa sensibilidade entorpecida para que possamos degustá-las no YouTube, nem que seja por pouco tempo.

No som do riso sádico dos veteranos, diante das violências físicas e psicológicas cometidas contra os calouros, se fazem presentes as vozes outrora caladas daqueles que sofreram tais violências e não puderam se manifestar contra elas, pois correriam o risco de serem identificados como os chatos que não souberam aceitar as "brincadeiras" do trote. A origem de tais atividades "lúdicas", as quais são, na maioria das vezes, identificadas como uma tradição que precisa ser mantida, são observadas já nas primeiras universidades europeias. Em 1342, na Universidade de Paris, houve a primeira reação institucional contra os trotes cometidos pelos estudantes franceses e alemães, que procuravam lidar com o narcisismo de suas pequenas diferenças por meio da aplicação de trotes muitas vezes mortais. Já em 1491, na Universidade de Heidelberg, os veteranos alemães obrigavam seus calouros a beber uma taça de vinho com urina, além de os novatos terem os cabelos arrancados em nome dos costumes "civilizados", pois eram considerados verdadeiros animais. Porém, haveria uma nova escuridão no final do túnel: esses mesmos calouros poderiam se vingar da dor que tiveram que reprimir, durante a aplicação do trote, quando se tornassem veteranos, perpetuando, assim, essa tradição nos novatos do próximo ano.

Como se pode notar, a associação da imagem do calouro com a de um bicho é muito mais antiga do que possa parecer à primeira vista. No dias atuais, o calouro é chamado de "bixo", propositalmente com a letra "x", uma vez que não tem sequer o direito de ser rotulado com as letras corretas.

É nessa condição de "animal" que ele deve se acostumar a, em alguns trotes, comer suas refeições nos restaurantes universitários com as próprias mãos, até que tenha a permissão de seus veteranos para que possa utilizar garfo e faca. Mas, nesse momento, caberiam as perguntas: por que os veteranos se consideram os portadores da cultura, a ponto de poder "civilizar" seus calouros? Com quem os veteranos aprenderam a proceder dessa forma?

O enfrentamento de tais questões necessariamente nos leva a refletir sobre a relação entre sadomasoquismo e soberba intelectual, um binômio tão caro às estruturas da própria universidade. Com efeito, os alunos aprendem com esmero as lições de nossos currículos ocultos, cujos conteúdos são muito bem visualizados pelo corpo discente, ou seja, se eles têm que, necessariamente, suportar calados as ameaças explícitas ou implícitas de certos professores (nem todos!) no transcorrer do cotidiano universitário, por temerem sofrer algum tipo de retaliação, chegará o momento da desforra na ocasião do trote nos calouros.

Não por acaso, na chamada aula-trote, o veterano finge ser professor e aterroriza os calouros com exigências descabidas, tal como ler textos em sete idiomas. Na verdade, tal demanda é uma cifra das queixas dos alunos em relação à constante falta de diálogo com os próprios professores, como se o aluno não pudesse também opinar sobre o que está estudando, porque é "apenas" um aluno. A aula-trote, que deveria servir para enganar os novatos, na realidade antecipa, sadomasoquistamente, aquilo que está por vir nas futuras aulas. O riso de aprovação do professor, que cede o espaço de sua aula para a realização da aula-trote, revela também seu alívio de não ter que repensar sua própria didática, uma vez que a catarse regressiva dos alunos, destituída de reflexão crítica, arrefece os ânimos e assim as tradições bárbaras são revitalizadas. Portanto, para que a questão do trote deixe der ser um tabu, urge refletir sobre a relação entre sadomasoquismo e soberba intelectual. Pois, dessa forma, nós, educadores, poderemos auxiliar a promoção de novas tradições de recepção dos calouros na vida universitária, o que implica a realização, muitas vezes dolorosa, de nossa autocrítica.

(*) Antônio A. S. Zuin é professor associado do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, do livro O trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação (Cortez).

Fonte:
O Estado de S.Paulo, 07/02/2010.

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